quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Por que não participei da Marcha contra a corrupção

Pra começar esse post de modo incisivo: não participei da Marcha contra a corrupção porque ela tenta transformar problemas estruturais em uma questão moral e disciplinar. Novamente o debate público é inundado por clamores moralistas e se recusa a uma discussão mais profunda das questões políticas latentes.
Façamos uma breve(íssima) retrospectiva sobre quando a opinião pública e a opinião publicada foram pautadas pela questão da corrupção: meados da década de 50, UDN, Carlos Lacerda, Tribuna da Imprensa, "mar de lama" e um tiro no peito de Getúlio Vargas.
Jânio Quadros e seu desastroso mandato foram resultado de promessas de moralização da política e promoção de uma limpeza na administração pública - lembra da vassourinha?
Após a redemocratização, novamente surge um presidente jovem e ousado, capaz de peitar o corporativismo estatal e dar eficiência à máquina pública. Fernando Collor, o caçador de Marajás!

Essa breve retrospectiva até o David Coimbra fez, beleza. Mas ela não apenas mostra que quando o debate político foi pautado pela moral erramos feio, mas também que o debate sobre a corrupção sempre se sobrepôs e abafou as questões de relevância muito maior. Sempre que a sociedade brasileira se viu em uma espécie de encruzilhada, em vez de debatermos projetos nacionais e reformas estruturais, fomos pautados por um discurso indignado e cego, sem propostas e objetivos, com direito a bravatas e discursos inflamados que apontavam desordenadamente para todos lados, paradoxalmente andando para lugar algum.

Pensemos no aqui agora: o governo Lula representou disparado os maiores avanços sociais da história do Brasil, em diversos sentidos. No entanto, foi constantemente pautado pela corrupção. Sendo simplista (porque se for me aprofundar em debater todos governos acusados de corrupção, não pararia de escrever nunca), o que ocorreu - e está ocorrendo -, de modo geral, é que diante do sucesso (em termos de aprovação popular) do projeto lulista, restou à oposição, incluindo aí a mídia hegemônica, o bom (ou nem tão bom assim) e velho discurso udenista-moralista. O que temos agora com Dilma não é apenas a continuidade do projeto lulista, mas também a continuidade de uma oposição perdida, sem projeto, vazia em propostas e por isso mesmo cheia de bravatas.

Bueno, é óbvio que o leitor a essa altura deve achar que sou um petista doente que defende incondicionalmente o governo. E não poderia estar mais enganado. Acham que estou dizendo que não devemos então nos mobilizar contra a corrupção? De modo algum. O problema é a dimensão que o debate tomou e ocupou na agenda pública.

É no mínimo preocupante que, enquanto Europa, mundo árabe e até os EUA discutem e repensam o modelo econômico e político que nos foi imposto, enquanto o Chile sai às ruas para discutir e demandar Educação, nós nos voltemos contra esse fantasma, esse espectro maligno que, como por mágica, se apoderou do Congresso.

"O brasileiro" insiste em ver seus políticos como algo separado da sociedade, descolado da realidade. Isso é em parte verdade, mas veicula uma grande mentira: a de que os políticos governam e legislam em causa própria. É uma meia verdade que eles "não nos representam" (e atente para as diferenças que esse lema possui na Espanha e aqui). O problema é quem eles representam. Pois todo político está lá em nome de forças sociais, e a questão é que essas forças sociais estão representadas de modo totalmente desigual.

As três maiores bancadas são a empresarial, a ruralista e a evangélica. Ora, isso obviamente não é uma representação legítima das forças sociais. E esse é o principal problema da marcha contra a corrupção: ela é totalmente incapaz de ver os mecanismos que capturam o sistema político.
Essa captura pelos grandes grupos econômicos e outras elites é a causa fundamental do imobilismo nos temas mais importantes que temos de debater.
É justamente essa distorção perversa da democracia que está em xeque no mundo ocidental, mas enquanto poderíamos discutir outras formas de organização política e econômica, a marcha se investe de uma "neutralidade", de um "apartidarismo", e de bandeiras toscas que só conseguem reforçar o coro punitivista que encharca o tecido social de ódio.
Afinal, o que esperam atingir? Que os políticos ouçam o grito que vem das ruas e se sintam culpados de formar e privilegiar os cartéis do Planalto? Que parem e pensem "ooh, meu deus, eles não estão satisfeitos com meu trabalho"?

Enfim, além de ser inútil, não ter propostas nem bandeiras decentes e se revestir de uma "neutralidade" que não existe e nem nunca existiu, o movimento trabalha nessa dicotomia tosca de "nós, população civil", contra "eles, políticos". Mas é óbvio que grande parte desse movimento acha que o responsável pela corrupção é o PT - e vá lá, o PMDB -, enquanto outros acham que é o Sarney, e outros acham que é o capitalismo. O que fica evidente é: essa necessidade de neutralidade, de "NÃO LEVEM BANDEIRAS DE PARTIDOS", etc, apenas evidencia a fragilidade de um movimento que luta contra uma abstração mas que possui dentro de si as verdadeiras divergências e lutas que permeiam a sociedade.

Além disso, ficou novamente claro o poder de agenciamento que a mídia hegemônica tem sobre o debate público. Praticamente todos estão convencidos de que nunca houve tanta corrupção no país. Porra, quem pensa isso não conhece um pingo da história do Brasil. A formação do Estado brasileiro é essencialmente corrupta. Alguém acha que a República Velha e o Estado Varguista eram probos e ilibados? A mais cômica de todas as afirmações é que na ditadura não havia tudo isso que tá aí. Aham, com a inexistência de Ministério Público e liberdade de Imprensa, e com a Polícia Federal mais preocupada em estuprar e matar do que fiscalizar os mecanismo de poder, bom, não fica difícil esconder a sujeira debaixo do tapete.

Se os alvos se direcionam contra o PMDB e a aliança dessa gigantesca máquina fisiológica sem cor ideológica, bom, basta dizer que o Sarney também foi presidente do Senado na base aliada do FHC, e que o Renan Calheiros chegou a ser Ministro da Justiça (sim! parece piada!) do príncipe dos sociólogos. Pra não falar no Toninho Malvadeza, grande ministro das comunicações! Enfim, a tchurma podre que ocupa o Congresso não brotou da umidade (ou falta de) do ar do Planalto, e tampouco chegou ali com o Lula.

Essa juventude pulitisada que ta aí na rua contra a corrupção é muito bonita, a mídia ta adorando, principalmente o Iotti e seu "acorda zé povinho!". Mas a questão é que esse moralismo se dissolverá facilmente no ar, e tomara que cedo, pois temos de protestar e pautar a mídia - em vez de ser pautados por ela - com os verdadeiros temas: reforma tributária progressiva (pois aí reside um dos sustentáculos maiores da desigualdade brasileira), reforma agrária (para ressuscitar essa causa que o PT vem ajudando a enterrar), regulamentação da mídia, revisão da política de drogas (leia-se LEGALIZE JÁ), etc. (poderia me delongar e falar ainda sobre reforma psiquiátrica, causa LGBT, entre tantas outras extremamente mais importante que essa que temos aí).

Afinal, quem é a favor da corrupção? Está na hora de tirar as máscaras moralistas e empunhar bandeiras onde as tensões sociais realmente se revelem.